um depois ainda sem nome (título provisório)

um depois ainda sem nome
(título provisório)

por ana luisa santos*

prólogo

este texto é fruto de uma provocação para a criação de dramaturgias em situação de confinamento.
a partir desse desafio, comecei a desenhar algumas situações:

  • confinamento 1: linguagem
  • confinamento 2: corpo
  • confinamento 3: espaço
  • confinamento 4: tempo
  • confinamento 5: dinheiro
  • confinamento 6: eu
  • confinamento 7: perplexidade

1:

habitar com letras, em determinado idioma, gramática, sintaxe, falar com palavras, expressões, gírias, com mais ou menos capacidade de compartilhamento. ouvir frases, perguntas, respostas, discursos. ler livros, mensagens, e-mails. dizer, tentar dizer o que se pensa, o que se sente com um determinando código linguístico. confiar mais ou menos na comunicação, experimentar diferentes suportes, plataformas para a interpretação. imaginar um tipo de contexto, um tipo de consenso de sentido para o significado das palavras, sinônimos, nomes, substantivos. hoje não sei o que significa medo ou futuro. o desamparo atravessa todas as situações, as condições, as possibilidades de fala. estar presa a essas linhas e as improváveis possibilidades de leitura é um tipo de risco. um risco de fracassar nas intenções, nas reverberações, nas possibilidades de contato. ausência de correspondência. mistério.

2:

habitar com dedos, mão, braço, ombro, tronco sentado, com perna cruzada, em uma prancheta que observo enquanto recebo o auxílio de uma caneta para registrar no papel algumas frases. escrever com o sangue do desejo, do desejo de endereçar a alguém, a um outro corpo que não é este que escreve, mas que lê. escrever com o estômago, embrulhado, com o esfíncter apertado, com o fígado abarrotado de sentimentos para processar. uma ideia de corpo muito frágil nesse momento. um corpo passível de contrair (e transmitir) um vírus e morrer, rapidamente, por problemas respiratórios. um corpo que sente falta de beijos e abraços. que sente falta de rua, de gente, de grupo. um corpo sozinho, um corpo que é sozinho mesmo com dois pulmões e dois rins, duas pernas e dois braços, dois olhos e duas orelhas. um corpo que ainda é sozinho apesar de ser povoado de poros e pêlos. um corpo que convive com secreções diariamente, buracos de todos os tipos, líquidos, fluidos e memórias. um corpo que sente frio, sente calor, sente medo, sente tristeza também. um corpo triste, sozinho, que escreve, que tenta escrever algumas frases desenhando letras no papel. um corpo que depois vai se acoplar a um teclado para digitalizar esse texto, esse sonho. um corpo digital que vai se tornar uma foto, um link, uma mini-bio.

3:

habitar no plano, no papel, na página, no branco, no suporte do tamanho A4, gramatura 75g, 21cmx29,7cm. era vegetal agora é papel. escrevo neste dia que tem uma data, um dia da semana, direto de um quarto, de um apartamento que chamo de casa. fica num bairro, numa cidade, num tipo de país. um país perto de um planeta. um planeta de um sistema solar. agora é noite, mas se tudo der certo, vai amanhecer daqui umas horas. desse quarto com cadeira, cama, computador, presa ao chão pela gravidade. faço um esforço para fazer flutuar algumas ideias. as paredes estão fixas também e, felizmente, há uma janela. o quarto dá para o um corredor, o corredor da casa, um apartamento que divido com outra pessoa. é desse quarto que transmito, que tento transmitir algum tipo de sinal. nesse quarto eu durmo. sonho também. nesse quarto eu choro e me distraio. às vezes eu saio e atravesso o corredor para ir ao banheiro, para ir à cozinha, para ir à lavanderia. há coisas, há outras coisas a fazer nesses outros espaços, embora eu geralmente volte sempre para o quarto. aqui, no quarto, estão minhas roupas, alguns objetos, meus óculos. aqui estão alguns escritos. tudo sob a força da gravidade e, como eu disse, eu escrevi, é difícil tentar fazer as coisas levitarem. aqui é também onde eu me deito e experimento a horizontalidade. aqui é onde me permito estar mais vulnerável. quase ninguém entra no quarto. eu entro e saio e adormeço aqui.

4:

ainda tem uma ideia de mês e de ano que acompanha os dias, que tenta acompanhar os compromissos, os prazos. não sabemos quanto tempo essa situação vai durar. essa leitura pode não demorar, mas, quem sabe, as sensações permaneçam. estou confusa quanto ao dia da semana desde que os marcadores de trabalho foram suspensos. as horas, essas convenções, parecem simultaneamente lineares e suspensas. ontem que parece hoje que provavelmente vai ser bem parecido com amanhã. as memórias estão bagunçadas, parece que o que foi antes foi mais estranho do que parecia. cada dia é um dia, cada hora é uma hora, agora e a perspectiva de projeto é quase uma ilusão mais nítida, no entanto. não sabemos, não faço ideia de como continuar e a própria ideia de continuidade está em ruínas. essa fragilidade de planos só é atravessada pelas necessidades cotidianas. é preciso reinventar o envelhecer.

5:

só saio para comprar comida. é preciso lidar com o dinheiro. trocar um valor no cartão de plástico, quando ele existe, pelo alimento. é preciso pagar ou aumentar a dívida das contas de energia elétrica, internet, telefone celular. é preciso pagar, tentar pagar para se morar, para usar esse espaço, esse papel, essa cidade. é preciso perguntar como vai ficar o trabalho, a remuneração. é preciso tentar não se desesperar, mas é difícil. é preciso comprar cigarro, sustentar o vício mais básico. não há muito mais o que comprar, nem é possível. não há comércio aberto, não há poder aquisitivo. não tem viagem, não tem cartão de crédito. mas tem as contas de gás, água, condomínio do prédio.

6:

escrevo do meu ponto de vista, que fico tentando não ser tão exclusivista, individualista, egoísta. mas não tem muito jeito. eu escrevo, neste momento, sozinha, de um ponto de vista. uma perspectiva pessoal resultante de uma ou algumas experiências de vida, que tenta se multiplicar, mas que vem de uma ideia de família, idade, gênero, nacionalidade, etnia. sou eu que escrevo, mas poderia não ser. poderia ser outro tempo verbal. poderiam ser nós ou elas. mas agora sou sobretudo eu. eu sozinha, escrevendo, eu sozinha, com os fantasmas que me habitam, escrevendo. eu sozinha, tentando reverberar o que escuto, escrevendo. difícil desviar dos meus(?) pensamentos, dos meus(?) medos. difícil sair de casa, desse estado, e me colocar no lugar do outro que também está sozinho no outro quarto, no outro continente. gente que está morrendo sozinha para evitar a contaminação. quem pode se colocar no lugar do vírus? ou no lugar do paciente número zero? quem pode se colocar no lugar de quem é capaz de inventar a vacina, o remédio? quem pode prometer alguma coisa agora? intervalo: tenho vontade de escrever cartas. por que as cartas podem ser interessantes agora? será que elas são pessoais? endereçadas?

7:

no que eu experimento um tipo de perplexidade e daí fica difícil a frase, o pensamento. a princípio, a perplexidade paralisa, imobiliza, não deixa a gente imaginar. eu paro e fico me perguntando – já que hoje é difícil fazer esse tipo de questão profunda para alguém de forma remota – e de forma presencial, praticamente impossível. o que é, o que significa sentir perplexidade? talvez eu não deva escrever de caneta, mas de lápis. alguma coisa menos definitiva, apagável. uma escrita mais frágil. um outro tipo de suporte, de materialidade para registro. um registro mais suave, talvez. menos petróleo, mas árvore. muda a cor também. do azul (no papel), do preto (na tela), para o grafite. a letra fica mais macia também. e eu me sinto mais vulnerável. mais vulnerável de escrever à lápis. por que? por que pode ser apagada com mais facilidade? por que é lida com mais dedicação? que espécie de experiência está implicada nesse gesto da escrita, da leitura? um desejo de inscrição, um desejo de confirmação, que a mudança de materialidade de suporte pode gerar de alteração? sobretudo se for alguma coisa que tenha/gere menos duração? a perplexidade é com a incerteza, o isolamento, o medo, o desemparo, a falta de recursos para a compra de alimentos, para o pagamento de contas. nunca anteriormente nos encontramos coletivamente numa situação desse tipo. não tem precedentes. se estamos por aqui, on-line, podemos nos perguntar: qual é a duração por aplicativos?o que é duração nesse tipo de plataforma? quantas janelas ficam abertas ao mesmo tempo em sua tela? em uma mesma tela? o que é presença, convívio, proximidade e distância nesse contexto?
a perplexidade está na possibilidade de cada gesto. qual é o sentido de cada gesto? a perplexidade envolve um deslocamento dos sinais de referência. é uma experiência de suspensão. o corpo, o sentido suspenso. o contrato suspenso. o consenso também. a interpretação também se suspende. suspensas estão as vias tradicionais de compartilhamento. a experiência de suspensão, vamos pensar, pode ser mais próxima, quando estamos na água, de boiar, de deitar, quando estamos na cama ou no chão. de qualquer forma, é um exercício que se aproxima da horizontalidade, no sentido de que nossos sentidos mudam, mudam de enfoque, e estamos mais vulneráveis. mais vulneráveis em vários sentidos, em vários sentidos de mobilidade, visão, percepção do espaço, do campo de ação, perspectiva, etc. o trabalho cerebral também é diferenciado. pensamos menos ou pensamos diferentemente. movemo-nos de forma outra. rolamos. acionamos outros músculos, outros ligamentos, outras articulações. dormimos, pegamos no sono, cochilamos e chegamos a sonhar. adormecer pode ser um portal para essa dimensão onírica. o que isso implica de efetividade nos coloca diante de um desafio afetivo. um desafio de estar abertxs e atentxs a esse outro saber do corpo. do corpo suspenso. do corpo que sonha. um corpo que sonha, inclusive, pesadelos.

1 2 3 4 5 6 7:

a questão é que a maioria das pessoas não tem acesso à internet banda larga. esse confinamento proposto/imposto pela desigualdade social no contexto brasileiro. então podemos tentar entender que, para variar, é limitado, limitadíssimo esse alcance. o trabalho de arte é ínfimo, nesse sentido. quem vai ler esse texto além de (quase) toda a comissão avaliadora? umas 200 pessoas, com sorte, caso a obra proposta seja contemplada na seleção. uma pequena ilha dramaturga, confinada em uma quantidade específica de conexões. porque nossas redes naufragam em seus alcances. como podemos criar mais vazão? sair do confinamento, do confinamento da bolha. esse é o objetivo.
p.s.: diário incompleto do confinamento

1,2
eu saí andando sem máscara. só vi uma pessoa de longe com máscara. ninguém conversava sem máscara. me deu vontade de voltar e pegar a máscara. mas não lembrava por onde voltar sem máscara. não tinha rosto com máscara. onde tocar sem máscara. andar esse impossível com máscara. precisava conversar sem máscara por uma tela. então continuei procurando pessoas com máscara. a rua vazia sem carro, sem máscara. um silêncio profundo com máscara. onde estão as vozes sem máscara? tentei inventar o caminho com máscara. as pernas na calça, os pés sem máscara. um medo intenso com máscara. não sei onde esse trajeto sem máscara vai dar. a vida com máscara para o desamparo, o desespero, a solidão. escrevo sem máscara e a saliva atinge o papel. nada garante um texto saudável com máscara.

3,4,5
ontem foram 14 idas ao banheiro, 20 à cozinha. estou perdendo o hábito de dar bom dia aos estranhos. já sinto os efeitos na coluna vertebral. sinto dores na lombar. preciso me exercitar com diferenças, mas está difícil manter a rotina entre quatro paredes. imagino um tipo de fuga pelo corredor do apartamento e só consigo me lembrar da gravidade, que me mantém presa ao chão, à situação. olho da janela e procuro ansiosamente por outras pessoas. como posso conversar estando nesse lugar do conhecido, do doméstico, do familiar? fico andando e procurando quinas, frestas pelo chão, rachaduras pelo teto. as manchas nas paredes parecem sombras latentes, memórias dos últimos encontros. procuro aguçar a audição e perceber os sons que vêm da vizinhança, seus afazeres, diálogos mais ou menos estranhos. invento uma caminhada diferente, reparando o piso, agradecendo às portas. o que me impede de sair? um senso coletivo, ironicamente. devo permanecer sozinha, em casa, para ajudar os outros.

6,7
bispo do rosário produziu toda sua obra “artística” em condição de confinamento.




*ANA LUISA SANTOS é performer e escritora. Mestre em Comunicação Social/UFMG e Pós-Graduada em Arte da Performance/FAV, atua também como curadora em artes da presença na realização de exposições e residências artísticas, núcleos de pesquisa e criação, atividades de formação e crítica. Desenvolve trabalhos para teatro e dança, com destaque para dramaturgia e figurino. É idealizadora do PERFURA \ ATELIÊ DE PERFORMANCE e co-diretora da plataforma O QUE VOCÊ QUEER. Artista indicada ao Prêmio PIPA 2017. Vive e trabalha em Belo Horizonte.


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