uma crônica do cuidado ou por uma performance queer da resiliência



uma crônica do cuidado ou por uma performance queer da resiliência
- um depois ainda sem nome -


por ana luisa santos1

o ano está começando e a ideia da expectativa permeia, começa a permear os estados da gente, os estados das pessoas. expectativas podem ser comuns, mas também diferentes. posso imaginar uma geladeira ou um piano. mas posso também tentar projetar. está difícil projetar. ou então projetar está como o que unicamente conseguimos fazer. mas o clima de preparação, de novo expectativa, talvez criar espaço para alguma coisa acontecer, está, pode estar no ar, no clima pós-janeiro, posfácio, pós-catástrofe em que estamos tentando nos habituar a viver.

em bh é tempo de campanha, é tempo de verão. é tempo de reunião também, de realizar projetos, começar um novo período letivo, refazer os votos. nesse tipo de clima, de temperatura e nível de umidade, vale a pena tentar pensar em aplaudir a vulnerabilidade. mas antes desse final, vem os créditos, a lista da equipe de realização.

um depois ainda sem nome. vinte vinte. não tem “lacração” nessa data. como devota do enigma, não me deixo iludir completamente pela mística da apresentação. em tempos de pânico do ostracismo, ameaças ao processo e fotos coletivas de grupos de trabalho, sempre sorrindo para a câmera, um tipo de selfie compartilhado, a fragilidade de nossas convicções está em primeiro plano.

tenho várias performances em mente e uma delas é realizar uma ação de longa duração de aplaudir. executar uma duração de aplauso durante um horário comercial, oito horas aplaudindo, continuamente, no espaço, com ou sem testemunhas. para além do sangue nas mãos, podemos pensar em outras consequências para os (a)braços. quem sabe inventar dramaturgias de relação. posso te aplaudir, se você quiser. agora e lá, durante a ação.

é uma pesquisa que me pede em desejo há algum tempo. veio um pouco do incômodo diante do contexto que configura hoje o gesto de aplaudir, mas também de outra tradição, da arte da performance, de experimentar os códigos, arregaçar significados, arrebanhar outras imagens para o corpo. o aplauso no teatro, o aplauso nas “redes sociais” do ambiente digital, o aplauso como moeda-vírus dos desejos de interação. a performance pode ser um tipo de serviço, um tipo de sonho, um tipo bizarro de sacrifício.

as platéias, muitas vezes, se aplaudem. aplaudem o seu próprio gesto de estar ali e exercitar o prazer escópico de ver, de assistir, de consumir “arte”, de consumir “cultura”. aplaudem tanto que até se levantam das cadeiras, gritam, reafirmam o código não pela experiência que acabaram de testemunhar, mas pela presentificação frontal do elenco, da equipe que está diante da platéia, como um selfie compartilhado em máxima exposição presencial. o aplauso é bom também, um alívio, acabou, nossa, gostei, pode ligar o celular, sair do modo silencioso, vamos saindo, enquanto vejo as mensagens, enquanto o que possa ter acontecido ali, em cena, diante, possa ficar para depois ou antes, não importa, o que importa agora são outras atualizações, outros perfis, outros tipos de interação, outras versões do aplauso.

no palco ou na “time line”, no que diz respeito axs performers, também podemos perceber a demanda por atualizações. depois de “lacrar” mesmo em sua vulnerabilidade, de se marcar a salvo no meio da catástrofe, o mergulho na auto-imagem está afogando o mistério. o que faz alguém que se prepara para entrar em cena? por que sair de cena é também importante?

em aulas de dança contemporânea eu aprendi que sair de cena é um gesto fundamental para criar espaço. criar espaço pode ser traduzido como tornar o espaço mais perceptível. essa tarefa de tempo e relação é um cuidado, uma decisão, uma preparação para deixar o espaço, deixar o espaço receber o olhar, receber o outro, alguém ou alguma coisa que pode chegar, inclusive, a imaginação. mas tem um vazio aí, um intervalo, um lapso que pode até ser de um segundo, um buraco, um corte. o tempo de piscar e mexer o pescoço, percorrer o espaço à procura, à procura de algo ou alguém e, quem sabe, permitir, reparar, restaurar o espaço, conferindo-lhe maciez possibilidade.

para “lacrar” não é preciso espaço. a “lacração” é frontal. como imagem não tem muita profundidade. é direta, bombástica, agressiva. acontece imediata. funciona, é necessária. mas muitas vezes repetida, cansativa, cooptada, como força às vezes disfarçada de produto, como capa para uma pele sensível, máscara sem perdão.

é bem capaz de alguém “lacrar” aqui ou ali e chegar em casa, na “solidão” e chorar muito, de dor, de sofrimento. se chorar está ainda muito bom, porque, às vezes, a tolerância à dor, à angústia é nula e daí taca remédio ou outro tipo de droga para anestesiar tudo, anestesiar sem sentir, sem falar, sem tentar ao menos elaborar a respeito. na “lacração” não tem luto; quem sabe lucro?

tanto no gesto de “lacrar” como na foto coletiva do grupo de trabalho, há uma demonstração do fazer. é preciso demonstrar que se faz – assim como na arte da performance – é preciso demonstrar que se faz, é preciso performar esse fazer, essa ação, esse imperativo “do it”. performar tanto a ação de realizar, de cumprir, de entregar, “to delivery”, como a ação de pertencer, acoplar um plano comum do coletivo – real ou imaginário, da equipe ou do código simbólico compartilhado de um tipo de força, um tipo de potência, um tipo de fetiche. nós fazemos e mostramos, nós performamos, nós deixamos a ver o que, supostamente, estamos fazendo. e o que estamos fazendo, principalmente, é posando.

diante da pose, o aplauso, o “click” da câmera, o registro, o fim. já entendi, possa sair, acabou, rola barra, desse a escada, atualiza o “feed”. eu curto, eu clico, eu aplaudo, eu admiro, eu me divirto. é um jogo marcado de códigos clássicos porque eu sei que quando acende a luz no final eu posso, eu devo aplaudir. todo mundo aplaude, aliás. todo mundo aplaude junto. e todo mundo sai junto depois, já com os celulares ligados, para combinar onde a gente vai agora, onde a gente vai beber, qual aplicativo eu vou chamar para me buscar.

lacração” é uma palavra estranha. há anos questiono as pessoas sobre o seu significado. ninguém ainda conseguiu me responder. mas me demonstram, acham fácil demonstrar, difícil de definir.

uma vez coloquei essa dúvida em um curso de curadoria que eu estava fazendo e o professor me perguntou o que era “lacração”. o professor disse que a esquerda estava sendo acusada de ser “lacradora”. eu disse que não sabia, que eu fazia essa mesma pergunta, eu disse que eu não era produto. eu disse que o me lacre já tinha sido rompido que “lacrar o cu das inimigas” era uma importação ruim de um tipo de ideologia competitiva que havia sido de forma misógina compelida às mulheres. eu disse também que “lacrar” parece vedar, fechar, cobrir a superfície de contato, garantir a não abertura, uó.

para além disso, eu disse também que a lacração estava cansativa, repetitiva. vem aí o carnaval e começa de novo o estoque de imagens, a oportunidade do selfie inofensivo, a celebração permitida da fantasia, desde que regsitrada, passada em cartório, em filtro e corretor ortográfico. um carnaval muito espontâneo, uma lacração orgânica, um aplauso básico do palco que pode ser a rua, o bloco, a procissão. queria ver a foto da ressaca, a foto da solidão de voltar sozinhx para casa depois de tanto empenho, de tanta expectativa.

mas essas imagens estão desaparecidas. ninguém quer mostrar a vulnerabilidade, ninguém quer tirar esse tipo de roupa. a arte da performance, como uma linguagem desconhecida, tem entre suas místicas essa possibilidade de nudez. dizem, digo, posso afirmar que performer gosta de tirar a roupa. gosta de ficar peladx. é verdade. tirar a roupa é um gesto, um código que a performance atualiza, assim como o aplauso. ficar nu pode ter diferentes significados, diferentes contextos. mas nunca é muito simples. mesmo na ultra intimidade do banho, com a gente mesmo, é preciso negociar o contato, observar poros e rever ambiguidades. é preciso um esforço para enxergar a própria nudez, com ou sem espelho.

eu acabo de publicar perdão é uma perda grande. ainda não sei as consequências disso. como performer, tento perceber e exercer o gesto solo de ativar a cena como um tipo de sacrifício. é um jeito de tentar ir além da encenação, de tentar perceber o tempo não só para frente. uma maneira de exercitar o tempo junto e não separado.

uma tarefa de imaginar o tempo antes, durante e depois. enfrentar a mística da apresentação com a ferida do encontro. colocar fogo no selfie, emular a presença na fogueira das retinas, performar a solidão de outra maneira. criar uma imagem, uma cor, uma temperatura para essa presença solitária que está ali, na cena, mas daqui a pouco, não vai estar, vai sair, vai deixar o espaço e você, vai deixar o espaço e você aqui sozinhx, vai deixar sozinhx o espaço e você, aqui, vai deixar o espaço e você aqui, sozinhx na frase solo de quem escreve como alguém que lê, em silêncio, no vazio entre linhas e os despertadores, as notificações.

como performer preciso trazer o processo do trabalho como memória da pele. esse processo, essa pesquisa, uma investigação da ação, da resistência dos materiais e do corpo. muitas coisas acontecem no processo e uma foto da reunião da equipe é muito pouco para reverenciá-lo. é possível tirar uma foto do caderno? quem sabe um registro do lanche comido? às vezes uma expressão de um tipo de angústia diante do que não sabemos, do imprevisível.

mas o processo se tornou a divulgação e está ameaçado. trabalhar no processo tornou-se divulgar o trabalho, quer dizer, tentar encontrar mais ou menos criativamente um jeito de mostrar o trabalho, mostrar que estamos trabalhando, produzindo, de preferência, muito bem acompanhadxs, sorridentes. esse processo parece não ter angústia, parece não ter solidão ou dúvida.

do mesmo modo a presença em cena está convicta. está convicta de aparecer e não necessariamente convicta do que é preciso fazer. aparecer, apresentar, mostrar pode ser um pouco diferente de demonstrar. é preciso não deixar dúvidas que acabou para receber os aplausos. as fotos podem ser um signo do final. mas quando começou isso?

aplaudir é um gesto de movimentação de energia. aplaude-se para ritualizar uma mudança de estado ou de percepção. como uma amplificação dinâmica do gesto de unir as palmas das mãos diante do peito, diante do plexo, aplaudir produz uma vibração cinética da intenção de ativar os dois hemisférios cerebrais, de celebrar essa reunião de energias no ser e, ao mesmo tempo, ativá-las, especialmente diante de algo extraordinário que acabamos de testemunhar ou descobrir. aplaudimos como uma forma de parabéns para o acontecimento. saudamos esse acaso, esse rasgo da vida e do tempo (ou do tempo da vida).

precisamos do aplauso, sem dúvida. mas precisamos também de sua dúvida. precisamos do aplauso, com dúvida. não podemos deixar o aplauso ser dívida. não devemos abrir mão do direito de prescindir o aplauso ou a situação de ser aplaudidxs. precisamos da contemplação silenciosa ou dialogada da amizade que escuta, mas não espera de você sempre uma performance. “lacrar” cansa. e, artisticamente, pode às vezes embotar uma linguagem de resiliência, tão necessária quanto interessante.



p.s.: historicamente, as práticas e experimentos da arte da performance são anti-glamour. em grupos de estudos, cursos e residências artíticas em que participei, ninguém pensava a performance como “lacração”. era basicamente o contrário. a gente, o grupo, o coletivo daquelas pessoas que estavam ali compartilhando experiências e processos de trabalho, testemunhando processos de criação, criação de convicção inclusive, a gente tendia – e ainda tende – a apoiar x performer, solidarizando-se com elx pelo grau de desafio e dificuldade que uma ação artística performativa geralmente implica. é preciso apoiá-lx antes, durante e depois da ação. e nos procedimentos da arte da performance tem até um nome para isso: anjo. anjo é uma pessoa que você convida, que você pede, na verdade, para acompanhar você durante a realização da ação, dependendo da situação que você está propondo. alguém com quem você conversa, com quem você compartilha o processo de trabalho, alguém que se dispõe a te ajudar, a te acolher, a testemunhar intimamente sua travessia e, se for o caso, a única pessoa oficialmente autorizada a interferir na duração da ação caso alguma coisa aconteça que ameace a vida ou a integridade física dx performer, desde que não seja um acontecimento previsto como possível desdobramento na proposta da performance. o anjo não está ali para aplaudir, embora elx possa contemplar a imagem de um ponto de vista muito íntimo. o anjo está ali para testemunhar a sua passagem e, se for o caso, te lembrar de voltar, te lembrar de voltar para contar o que aconteceu do lado de lá, do outro lado da imagem.



1ANA LUISA SANTOS é performer e escritora. Mestre em Comunicação Social/UFMG e Pós-Graduada em Arte da Performance/FAV, atua também como curadora em artes da presença na realização de exposições e residências artísticas, núcleos de pesquisa e criação, atividades de formação e crítica. Desenvolve trabalhos para teatro e dança, com destaque para dramaturgia e figurino. É idealizadora do PERFURA \ ATELIÊ DE PERFORMANCE e co-diretora da plataforma O QUE VOCÊ QUEER. Artista indicada ao Prêmio PIPA 2017. Vive e trabalha em Belo Horizonte. www.anasantosnovo.com

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